“O POETA DO POVO ESPANHOL”
Como começo de uma desejada colaboração com este jornal de Alcochete, permitam-me que lhes fale do poeta que nasceu para sofrer e morrer pelos mais humildes, como o fez Jesus Cristo por todos nós.
Precisamente este ano, se cumprem dois episódios importantes de um dos maiores poetas autodidactas da vizinha Espanha. Porque se trata de um poeta que escreveu emocionantes e melancólicos poemas, deixem que em sua honra o recorde neste espaço, que sirva também de meio para os animar a lerem as suas obras, nas quais nos deixou boas doutrinas para ajudar o povo, e de uma maneira especial, os oprimidos pelos ricos.
Estou falando de Miguel Hernández, de quem este ano se celebram os dois episódios mais importantes da sua vida. Cem anos do seu nascimento e sessenta e oito da sua morte e martírio, ordenados pelas hostes franquistas.
Como outro Cristo, também teve de percorrer o caminho do calvário, começando pelos maus tratos de seu pai, que não lhe permitia ler nem escrever, a morte do seu primeiro filho, a morte do seu amigo Sijé e o percurso por dez cadeias de Espanha, até à sua morte pela tuberculose em Alicante, sem assistência médica, sozinho e abandonado.
O menino Miguel, segundo contam os historiadores, tinha a pele branca, a boca e o nariz pronunciados e um corpo robusto. O mais evidente, eram os seus olhos grandes e claros, que desde o primeiro instante começaram a distinguir os livros, as luzes e as cores, e sobretudo, a sua mirada aberta ao mundo e ás injustiças que sobre ele se cometiam.
Miguel não tinha nascido para pastorear. Por isso, aproveitou a ocasião que lhe proporcionaram os seus amigos e mudou-se para Madrid depois de ficar excluído do serviço militar. A sua viagem e estadia em Madrid, foi outro martírio para ele, já que, como diz Juan Ramón Jiménez: «os poetas da época eram refinados imitadores de guerreiros e não tinham convencimento do que diziam. O único poeta ainda jovem que lutou e escreveu no campo e na cadeia, foi Miguel Hernández. Por este motivo, quase ninguém o ajuda e na pequena pensão onde se hospeda, uma imensa interrogação, um caos de incertezas e uma tremenda solidão se apoderam da sua mente. Sijé: «Tu que tens a luz dá-me a minha/ Sou como um cego. Vou sem rumo e ando às apalpadelas/ Cego de ilusão e louco de harmonia/ Esse é o meu mal. Sonhar. A poesia.» Desesperado, faminto e enfermo, decide regressar a Orihuela. Com tanta má sorte, que não tendo dinheiro, não pode comprar o bilhete de comboio e obteve um por caridade, expedido em nome de outra pessoa. A guarda civil prende-o e leva-o à cadeia, onde passa vários dias sem comer e desesperado. Ainda que esteja fragilizado moral e fisicamente, as suas ideias literárias renovam-se por completo. Passado um tempo regressa de novo a Madrid com uma bolsa de 50 pesetas, concedida pela Câmara de Orihuela, trabalha como dactilógrafo para um notário e continua a escrever as suas melhores obras e a cultivar sua vocação poética como podemos ver no seu livro «Perito en lunas», publicado num diário de Murcia.
Uma prova mais de que Miguel era um verdadeiro defensor do povo, foi que ao ver o que estava a começar a suceder nas Astúrias e mais tarde em todo país com o começo da guerra «incivil», a mais cruel de Espanha, escreveu no diário «La Verdad» estas palavras: «Vinde aqui filhos do sulco. Vos expropriarão. Vos arrebatarão a sabedoria do não querer saber e a alegria de ignorar». Era um homem pontual. Com uma pontualidade que poderíamos chamar-lhe de coração. Quem dele necessitasse à hora do sofrimento ou da tristeza, lá o encontraria no minuto certo.
Por isso, já em plena guerra, como porta-voz das tropas avançadas, diz algo muito importante da história de Espanha e dos políticos de sempre. «Se tivessem evitado a fome e a crise económica, se o Estado Espanhol tivesse renovado a sua arcaica organização económica, e em vez de fomentar a aventura, tivesse fomentado e impulsionado uma indústria, uma ciência e uma cultura para todos, outro galo cantaria ao ouvido dos espanhóis, e não a miséria que nos vêm cantando».
Durante estes anos em Madrid onde o condenaram à morte pelos seus textos, segundo o julgamento sumário realizado por uns analfabetos militares e ter estado em dez cadeias de Espanha, até que morre na cadeia de Alicante; escreve os seus perfeitos e formosos poemas: «Sentado sobre los muertos», «Cancionero y romancero de ausências», «El rayo que no cesa», «Vientos del pueblo», «Canción del esposo soldado», «El nino yuntero», «Silencio», «Hijo de la luz y de la sombra», e a maravilhosa elegia que dedica ao seu amigo Sijé, quando este morre. Estas e muitas outras obras suas, manifestam-nos a humanidade e o amor deste homem pelos outros.
Miguel Hernández era um poeta ético e moral. Por isso, como dizia anteriormente, teve que percorrer o calvário do seu pai, a morte do seu primeiro filho, a morte do seu amigo Sijé, e as dez cadeias (se àquelas masmorras se pode chamar cadeias) até à sua morte em Alicante, abandonado e sem assistência médica de nenhum tipo. Miguel, ainda que o pretendam obrigar, não rompe o seu compromisso com aquilo em que sempre acreditou, com o qual alimenta a sua fé de ser humano que procura a paz, a verdade e a justiça e de maneira muito especial, a sua vocação pela ética até à beira do abismo de uma morte digna para ele e ignominiosa para os seus assassinos franquistas.
Vicente Aleixandre descreveu assim o corpo inerte de Miguel Hernández: «O seu corpo ficou hirto, vi também o seu rosto acolhedor de um sofrido espanhol. Morto, comido pelo sofrimento, madeiro quase de dor, com espantosa expressão de agonia serenada pela morte. Rosto como sagrado, poderosa testemunha final, que ninguém nem nunca poderá borrar». Miguel Hernández, foi sempre um leal companheiro de alma e coração, que ainda depois de morto, nos vai ensinando muitas coisas. Que descanse em paz. [30]