O MONÓLOGO DA SERPENTE
Este casal é divertido. É mais simples que um cubo e ela é mais presumida que um pavão real. E os dois crêem que eu sou uma serpente.
Este paraíso dá para muito. Ele, não deixa de trabalhar no jardim, enquanto ela procura novidades. Não se inteiraram que estão metidos na eternidade para sempre. Vão atrás dos seus olhos. Seria melhor para eles não os ter. Cegos de nascimento. Ainda que seria melhor não falar do seu nascimento; se Deus, se o barro, se o sonho, se a costela, se nenhum outro animal, se a carne da minha carne e o osso dos meus ossos… Com o passar do tempo eles quererão ser elas e elas ser eles. A carne e o sexo os atrairão. Primeiro, farei que se ponham todos nus e em massa. O encanto do turismo sem biquíni. Se irão fartar de aborrecimento. Se desesperarão de aborrecimento quando se aproximarem dos trinta anos. E alguns serão malucos até mais tarde.
A verdade, é que por agora ela é formosa e bela. Se eu não tivesse os anos que tenho e a minha sabedoria actual, gostava de ver o seu corpo e a sua cabeleira. Não me estranha que ele, (tão ingénuo!), beba os desenganos por ela. Já se fartarão dos seus corpos, já se rirão das suas inteligências depois de prostrar-se estupidamente ante a ciência, em vez de aproveitá-la para dar de comer e curar tantos males. Agora, os dois são jovens e incautos. Com o tempo irão polindo e aperfeiçoando a sua estupidez. Eu posso evitar que melhorem a sua sabedoria. Não creio que Deus se aproveite muito desta classe de mamíferos que caminham sobre as suas extremidades posteriores. Às suas enfermidades me remeto. Eu encarrego-me disso. Morrerão desesperados. Deus avisou-os que morreriam. Do seu desespero me encarrego eu.
O mal, é que pensam, recordam e falam. Sabem que são os únicos neste jardim. Sabem que todos os demais bichos fogem deles porque têm medo deles. Embora ainda não haja aparecido os grandes mamíferos. Rebaixarei a sua futilidade com microrganismos… câncer, sida, depressões…Farei que se desesperem. O pior, é que ainda podem falar com Deus. Ainda podem arrepender-se. Isso de que «Quem vos disse que estáveis nus?» é capaz de destruir a minha destruição. Anula a minha astúcia. Mas também disso me encarregarei eu. Tirarei tudo da sua cabeça à base de remorsos e desesperos. Tenho que impedir que sejam humildes. Farei com que pensem que Deus é como eles e que guarda rancores. Apesar de que esta raça de imbecis pode falar com Deus quando são inocentes, eu me encarregarei que o esqueçam. Pelo menos a maioria o esquecerão. As minorias não me preocupam… ainda que não esteja seguro disso. As minorias honradas podem ser terríveis. Mas em geral estes humanos serão muitos porque terão filhos. Mais que outros mamíferos. Tenho trabalho de sobra. Não poderão evitar ter filhos. Com o tempo lhes ensinarei toda a classe de truques e astúcias para evitar os filhos ou matá-los. E isso os desesperará ainda mais. Os filhos salvariam aos pais. Mas matarão os seus filhos e será um bom negócio para muitos. Para mim, pelo menos e também para eles. Tal como intui-o, adorarão o bezerro de oro mais que a Deus. São assim de estúpidos.
Parece que o que lhe disse Eva deu resultado, porque Deus chamou-os a capitular. Foi a desgraça: «A trabalhar e a parir com todas as dores!» Logo a morte. Felicito-me. Já estava a chegar-me ao nariz tanta visita e predilecção de Deus para com eles. Do que não gostei tanto, foi o anúncio de que um descendente dela me esmagaria a cabeça e que eu iria mordê-la sem êxito.. Se não mordo o pé do ditoso descendente, morderei o coração de muitos outros. Se não posso com ele, já o veremos, cairão multicores com as minhas sugestões, haverá gente de sobra porque eu despertarei neles as ânsias do prazer. São parvos e continuarão sendo.
Venderão o seu primogénito por um prato de lentilhas Quero dizer, vão-se esquecerão da sua eternidade para se tocarem com prazer uns aos outros. Já sei que a terra dará algumas flores mas serão poucas. Embora uma me preocupe, especialmente pela sua capacidade de enamorar ao mesmo Deus. A humildade faz com que eu fuja com o rabo entre as pernas, como vulgarmente se diz. Os humildes serão quiçá muitos, não estou segura. O encanto da maravilhosa flor humilde dará exemplo. É preciso ter lata! A fascinação que a humildade pode exercer sobre os débeis corações humanos, tão sensíveis e tão parvos. A mim não me fascina, mas temo a humildade mais que a pureza. Penso que essa primeira flor que se perfila no horizonte, vai ter mais seguidores. Criará cátedra e vai-me desgostar pela minha maldade que enamorou a Deus.
Deus enamorado!... Parece um contra senso, mas, se Deus protege essa flor, estou arranjado! Veremos quem ganha. Basta que uma alma humilde se livre de mim para que se crie cátedra. Não vou poder dormir tranquilo. Nunca o fiz. Há já muito tempo, uma eternidade de tempo a falar com os parvos, que nem posso descansar. Não obstante, se diz que Deus descansou ao sétimo dia. Já vêm... eu não durmo a pensar nas vinganças que vou fazer. E se um destes estúpidos e sensíveis humanos de carne e osso se me escapa, me aborrecerá muito. Por outro lado e embora não tenham a minha categoria, haverá muitas outras serpentes com a minha capacidade, que me irão ajudar. Serpentes morais, políticas zoológicas ou psicológicas que vão ameaçando, pervertendo, envenenando e remordendo consciências de humanos sensíveis. Faremos com que os homens não sejam humildes mas astutos e inimigos uns dos outros. A questão é criar discórdias. As brigas matam a humildade. Não!... O meu reino não terminou. Viverei muitos séculos. Viverei eternamente como eles dizem. Deus arrepender-se-á de me haver criado.
Por certo, nunca expliquei a mim mesmo, porque não me aniquilei ainda. Talvez eu estivesse reservada para aborrecer aos homens. Quererá que eu seja o príncipe deste mundo, para sacar dele os humanos. Para que desejem o feliz reino de Deus, no que a maioria não crê. O que eu digo… que são malucos. Juro que entrarão nesse reino feliz sem muito sofrimento. Farei que se odeiem sem remédio. São tão idiotas que vão acreditar em mim. Sou professora do ódio. O tempo não passa para mim. Isso ao que os mortais chamam tempo. Eu vivo no ódio, não no tempo. Rio-me do homem e da mulher; das suas debilidades e paixões. Para eles passaram séculos mas para mim, cumpriu-se a promessa que Deus lhes fez. Que da sua descendência nasceria (da sua carne e paixões) quem me esmagaria a cabeça.
Nasceu uma flor que me faz tremer se é que eu, o primeiro anjo, possa tremer. Não me esqueço da minha classe, mas tremo. Essa flor não leva o meu cunho no seu interior. É realmente humilde. Não como os que pelas suas orações e sofrimentos vão fazendo-se um pouco humildes. Esses são uns aficionados que pretendem fazer-me frente. Vão de livres se Deus não os apoia. Mas essa flor é humilde desde antes de eu existir, desde o princípio dos tempos porque assim a fez Deus, meu inimigo, o que me antecede em tudo e sempre me surpreende. E essa flor nasceu na ditosa terra prometida, na terra dos patriarcas, dos reis ungidos e dos profetas. O nome da flor é Maria. È inacessível para mim porque foi criada até no mais íntimo do seu ser, no amor de Deus. Ponho-me furioso com isto. O meu reino se desmembra. Está-me completamente vedado. Até agora todos os que nasceram levaram o meu cunho. Tive sempre cuidado para que fosse assim. Nem um só escapou ao meu cunho, antes ou depois, se revelou neles e os destruiu ou, pelo menos, os martirizou mais ou menos. Eu tenho-os bem guardados, ainda que esperem o cumprimento das suas vidas em não sei que promessa. Esta flor, Maria, traz maus augúrios para o meu reino sobre os mortos. Hoje é um mau dia, uma péssima data. Hoje começo a sentir o seu terno mas implacável pé sobre a minha cabeça. Hoje temo a minha ruína apesar da estupidez dos filhos de Eva.
Mesmo assim, não se acabaram os sofrimentos da raça humana. Resta-me o consolo de lhes causar dano, e eles se julgam com poder, com a sua ciência ou a sua política. Infelizes! Não obstante, a lembrança dessa flor, me faz morder o pó sobre o que me condenaram a arrastar-me ante a raça humana. Me vingarei. Veremos se ainda posso fazer algo que manche essa flor. Temo que não vá poder fazer nada. Mas o que mais temo, é que a sua humildade cubra como um manto protector aos que a amem. Ela, na sua humildade, realmente é adorável.
Se não fosse tão velho escandalizar-me-ia que o Criador violasse a natureza como se a natureza fosse intangível. Mas não é intangível apesar de que os tontos-sabios de entre os homens, creiam que sim. Se a natureza fosse intangível não me tinham transformado em serpente. Ainda que na realidade, fui eu quem me fiz má. Sou eu quem quis fazer-se má. Eu sou o criador do meu poder de perdição. Esse é o meu reino. Mas do que estava falando: Deus fez a natureza do homem e da mulher para que procriem juntos e afinal essa flor, essa Maria, vai ser mãe, sem seguir as normas naturais. Estava desposada com José e, de repente decide não conviver com ele, nem com varão algum. E para maior mistério, agora concebeu e está em estado de graça. Se isto vai ser o novo costume, me enganaram e bem. Eu manipulava o sexo tão atractivo aos jovens, para a sua ruína e sofrimento. Era eu o dono e senhor do prazer a maior parte das vezes. Eu organizava os adultérios, os aborrecimentos conjugais, as discussões familiares e os assassinatos estúpidos. Se uma nova natureza vai ser moda, vou ter que reorganizar o meu reino sobre valores menos carnais. Não é que seja impossível, mas eu sou pouco amiga de mudar as minhas estratégias de destruição quando tiveram êxito durante tantos séculos. Assim que esta flor, Maria, é a que me vai esmagar a cabeça? Já veremos!...
Mas preocupa-me que quem o faça vá ser o filho, que esse dom vindo de Gabriel anuncie à flor. Eu sou mais que Gabriel. Eu era o primeiro, eu era antes que ele. Não sei que mania tem o Criador de preferir aos segundos. Não importa, sou eu quem enfrenta a Deus. Me prepararei para continuar a destruir. Na realidade um pouco de briga vai-me bem. Já me estava a aborrecer com a repetição das minhas fáceis actividades de ruína. Os homens são aborrecidamente estúpidos em todas as partes. Também o são os outros animais, mas esses não me interessam. Não sabem escolher entre o bem e o mal. Não são os predilectos do Criador. Agora que penso, há homens de todas as classes. Aí tens Abel, assassinado por ser honesto com Deus, aí está Abraão, disposto a apunhalar o seu próprio filho por indicação de Deus (se necessita ter crueldade!), Moisés, que organiza todo um povo (era um mandão) com umas palavras que lhe parece ouvir de uma sarça ardendo, palavras por outra parte bastante incompreensíveis. O que disse, que Moisés era um mandão. As mulheres também lhes vão à saga, mas elas o que mais desejam, é procriar valentemente.
Esta Maria é diferente. Não procria como é costume fazê-lo os mamíferos já que engendra na sua matriz por obra do Espírito, segundo palavras do chato Gabriel. Não entendo esta predilecção de Deus por querer misturar-se com os homens tão maioritariamente vulgares, vis, fáceis de manipular, seguidores dos piores instintos, se não são alguns, pouco e desconhecidos. Algum plano secreto terá Deus e temo que me obrigará a mudar as minhas estratégias que durante séculos tiveram êxito.
Assim, Maria concebe sem concurso de homem algum e José não pode senão pensar que lhe puseram os cornos. A história tem a sua graça, se bem que maldita. Vou ter que fazer o possível por inventar algo parecido, ainda que do espírito não tenha nem a mínima ideia. E isso que sou anjo.
Mau, mau, mau!... Nasceu em Belém o filho de Maria com todas as promessas de David, com anjos e na pobreza, má combinação para os meus interesses. Não gosto dessa combinação de pobreza e espírito. Me deixam sem armas. Virgindade, pobreza, profecias e anjos, me fazem pressentir o pior para o meu reino deste mundo.
O que mais me afecta, é não ter já esperança alguma e eu, o demónio, o príncipe deste mundo, não posso tê-la. Este mundo não dá esperanças verdadeiras a ninguém senão ódios de todas as classes. Os pobres humanos caiem como peixes. Mas esta virgem mãe não caiu nunca. É uma chatice!.
A minha única satisfação como demónio é aprisionar e escravizar almas e a alma desta virgem se escapa das minhas garras sem ter a mínima debilidade nem o menor erro. Realmente se cumpre o anúncio do Génesis. Me está pisando a cabeça. E isso não é o pior, já que temo que o seu exemplo arraste a muitos que serão virgens, pobres e adorarão o filho de Maria. Já lhes estenderei os meus laços de diabo nos quais cairão. Todos os demais nascerão com a minha marca nas suas almas, não como nasceu Maria. Ela suspeita que é a única, como também suspeito eu, em má hora, o seu filho será o Enviado, o Filho de Deus e o Salvador dos meus escravos, estes animais humanos. Ao Filho já lhe tentarei no seu momento próprio. Tenho que estar seguro de quem é. O meu reino está na morte ou em que me adorem em lugar de adorarem a Deus. Então o Filho e eu nos veremos as caras. Mas entretanto tudo anuncia a minha vergonhosa derrota, ainda que tratarei que não seja definitiva. Nem todos escaparão das minhas garras se logro que pensem que só são animais. Muitos estão desejando sê-lo. [37]