MUITO CUIDADO COM A GRAMÁTICA!
Corria o ano 1948. Começava então os meus estudos de latim. E uma das normas que me ensinaram para que sempre a tivera em conta foi: «duas negações afirmam». À primeira vista parecia algo inteligível; entendia um que duas negações negariam com maior força; igual que uma segunda afirmação reforça a primeira. Mas chegava o exemplo e o axioma ficava claro. O pronome indefinido «nullus», significa «nenhum»; há outro indifinido que tem a negação incorporada «nonnullus». Literalmente significa «não-nenhum», e como se pode entender bem, «não-nenhum» é exactamente o mesmo que «algum». Se nenhum «não faz», é que «algum» faz. No exemplo exposto a consequência é clara; mas não é tão meridiana a conclusão em outras frases nas que se encontram duas palavras de sentido negativo. E é muito importante calar esse sentido das duas palavras porque, de outro modo, se pode dizer o contrário do que se queria expressar. «O não», como dizia um espanhol galego, Um malicioso pode entender que, ainda em estrita gramática se diga o contrário do que se interpreta, na realidade se diga exactamente o que se quer dizer, sobre tudo se o modo de proceder do orador corresponde melhor a uma interpretação maliciosa.
Para que se me entenda melhor, exporei um caso real. Se trata de uma expressão que ouvi no passado dia 18 de Maio a um orador espanhol, num comício divulgado pela televisão espanhola. Aqueles que o ouviram saberão muito bem a quem me refiro; aqueles que não o ouviram ficarão somente com o exemplo que justifica o título deste comentário.
Disse o orador em questão: «Lutaremos cuidadosamente para impedir que ninguém participe nas listas eleitorais?» Não está tão claro o erro gramatical como no caso do «nonnullus»; mas se entenderá muito bem à doutrina que se aplica. O verbo impedir tem um significado negativo. É igual a «não permitir», pôr um obstáculo eficaz, etc. etc. Y utilizou-se seguido do indefinido «nada». Em lógica consequência, se impede-se que nada, se permite que alguém; a dupla negação significa, em rigor, a clara afirmação.
Estou convencido de que o orador quis manifestar a sua decidida postura de impedir com todos os meios ao seu alcance, que algum indivíduo, ou algum grupo, um somente que não devera estar nas listas eleitorais se introduzira nelas utilizando procedimentos fáceis ou muito sofisticados. Mas a expressão devera ser: «Lutaremos cuidadosamente para impedir que alguém participe nas listas eleitorais?» Uma pessoa, que não seja maquiavélica, não aquilata tão rigorosamente as suas expressões e, ainda que utilizem as duas negações (ou as duas palavras de significado negativo) interpretaria que se pretende expressar o que diriam uma palavra de significado negativo unida a outra de significado e manifestação positivos. Devemos andar com muito cuidado, sobre tudo em situações que apresentam tantas e tantas pessoas que estão dispostas a interpretar de modo malicioso aquilo que disse com toda a ingenuidade.
Essa ou essas pessoas maliciosas podem tirar partido e dizer: «Já manifestou, ao parecer sem querer, o que são as suas verdadeiras intenções permitirá que alguém se introduza, que quer dizer em positivo o que manifestou com palavras que formam uma proposição aparentemente negativa. Já estamos nas mesmas de sempre. A Gramática tem esses perigos pela suas complexidade; e a português é uma das mais ricas e, em consequência, mais perigosas.
Os especialistas em Filologia Portuguesa deveriam ter numerosas intervenções nos meios de comunicação para pôr ao alcance do cidadão normal o uso da língua, por outra parte tão descuidado em numerosos foros.
Ainda que possam dar-se pequenas divergências, como a manifestada, atribuível por outra parte a distintas fontes, o empenho de ensinar coisas tão interessantes é louvável e se deita em menos nos meios de comunicação. Com o emprego de normas tão elementares como as expostas, se evitará que interpretações malévolas atraiçoem a verdadeira intenção do que fala em público.
4) Não fui nem sou filólogo ou grande letrado en el arte gramatical. Escrevo simples e literalmente o que penso, de uma forma vulgar, sem contemplações técnicas, nem normas académicas da modernidade. Isso sim, procuro sempre expressar-me com a voz do povo, o sentido da expressão cativadora e a alma literária que me infundiram os meus evocados professores, quando comecei a descobrir a bela e rica língua portuguesa.